Os protestos da Geração Z mantiveram em suspenso durante semanas os governos do Quénia, da Nigéria, da África do Sul e do Uganda, entre outros. Fora do radar internacional, a Guiné-Bissau tem testemunhado recentemente protestos intergeracionais, após uma alegada tentativa de golpe no final de 2023. Manifestantes acusam o Presidente de ter orquestrado o golpe para dissolver o parlamento por decreto. Muitos na Guiné-Bissau agora contestam a presidência e exigem o cumprimento do calendário eleitoral, e a manutenção das eleições presidencias marcadas para novembro de 2024. Este artigo aproveita os protestos como um momento para ampliar a visão sobre o tópico, oferecendo leituras narrativas e contra-narrativas da tentativa de golpe para contextualizar a atual situação política.
Os dias 30 de novembro e 1 de dezembro de 2023 marcam um novo capítulo de instabilidade política na Guiné-Bissau, um pequeno Estado costeiro da África Ocidental. Em razão de um alegado caso de corrupção no Ministério das Finanças, a polícia judiciária deteve o Ministro das Finanças e o Secretário de Estado do Tesouro. Quando os guardas nacionais tentaram libertar os dois governantes, numa ação nocturna, das celas da prisão judiciária, houve uma troca de tiros. Após este incidente, o Presidente Umaro Cissoco Embaló, através de um decreto presidencial, dissolveu o Parlamento, demitiu o governo e se autoproclamou Ministro do Interior e da Defesa Nacional.
Esses incidentes podem ser interpretados de duas maneiras. Por um lado, há a leitura oficial apresentada pela presidência da República. Os acontecimentos que tiveram lugar nesses dias foram descritos pelo Presidente Embaló e pelos seus aliados políticos como uma tentativa falhada de golpe de Estado. Como consequência, o governo recém-formado (com apenas três meses), liderado por Geraldo João Martins, e a Assembleia Nacional Popular, resultante das eleições legislativas de 4 de junho de 2023, foram removidos do poder, e foi instaurado um governo sob iniciativa do presidente Umaro Cissoco Embaló.
Por outro lado, os partidos de oposição e a sociedade civil apresentam uma contra-narrativa que descreve os eventos como orquestrado pela Presidência para assegurar a dissolução do parlamento, a fim de fortalecer o seu controle sobre o poder. Esta é a segunda vez que o Presidente é acusado de encenar um golpe de Estado, após uma tentativa de golpe em Fevereiro de 2022. Estas duas narrativas opõem-se uma à outra e precisam ser contextualizadas à luz dos eventos ocorridos desde 2019.
História em resumo: a legislatura de 2019-23 e as eleições parlamentares de 2023
Quando o atual Presidente Embaló assumiu o poder, em Fevereiro de 2019, o seu primeiro decreto foi a demissão do então governo, liderado por Aristides Gomes. Em seu lugar, o Presidente Embaló nomeou o seu apoiante Nuno Gomes Nabiam, o líder do partido político APU-PDGB (Assembleia do Povo Unido – Partido Democrático da Guiné-Bissau). Desde então, o Presidente reforçou ainda mais o seu controlo do poder:
- Numa tentativa de aniquilar os seus opositores políticos e impor a sua própria agenda, o regime do Presidente Embaló instalou um grupo de milícias com o objetivo de raptar e espancar ativistas e opositores políticos. O deputado da APU-PDGB Marciano Indi foi a primeira vítima do regime depois de ter criticado o Presidente Embaló numa entrevista.
- Os órgãos de comunicação sociasi, nomeadamente a RTP África, a Agência Lusa, a Rádio Jovem e a Rádio Capital, foram alvo de críticas do regime de Umaro Embaló. A Rádio Capital foi vandalizada duas vezes por homens armados. Este incidente, juntamente com outros de natureza semelhante, foi classificado pelas autoridades como um caso isolado.
- O PAIGC, a maior força política da Guiné-Bissau e vencedor das eleições legislativas de 10 de março de 2019, foi alvo de perseguição política. Por exemplo, o 10.º Congresso do partido foi repetidamente adiado por ordem judicial através de uma providência cautelar interposta por Bolom Conté, um dos membros do partido. Para além disso, a sede do PAIGC foi repetidamente invadida pelas forças de segurança pública e até mesmo gás lacrimogêneo foi utilizado contra militantes do partido. O presidente do PAIGC, Domingos Simões Pereira, foi impedido de acessar à sede do partido e também de viajar para o exterior.
- Do ponto de vista popular, as elevadas taxas de inflação, que provocaram o aumento dos preços dos bens essenciais, e a reação do Governo, que aumentou os impostos ou mesmo introduziu novos impostos, geram ainda mais ressentimentos.
À luz destes e de outros fatores, esperava-se que as eleições legislativas de junho de 2023 fossem tensas, principalmente levando-se em consideração o histórico de turbulência e violência eleitoral da Guiné-Bissau. Para as eleições, o PAIGC optou por concorrer por meio de uma coligação designada “Plataforma de Aliança Inclusiva Terra Ranka” (PAI Terra Ranka). Os resultados anunciados declararam a vitória da coligação PAI Terra Ranka com 54 eleitos, permitindo à coligação formar um governo e obter a maioria absoluta no parlamento. Isso significou uma perda de poder para o Presidente Embaló, uma vez que seus aliados políticos passaram para a oposição. As relações de poder entre o Presidente e o Governo inclinavam-se agora para o novo Governo.
Os acontecimentos da suposta tentativa de golpe de Estado
A susposta tentativa de golpe acima descrita ocorreu após três meses da tomada de posse do novo governo.
No período que antecedeu este acontecimento, circulavam informações de um alegado pagamento a um grupo de empresários, através do Ministério das Finanças, no valor de 6 mil milhões de FCFA. A maioria dos empresários supostamente pagos pertencia à coligação governamental PAI Terra Ranka, o que deu origem a rumores de alegada corrupção e desvio de recursos públicos. Na sequência deste episódio, o Ministério Público efetuou buscas e apreensões de documentos no Ministério das Finanças. O Ministro das Finanças, Suleimane Seide, foi questionado no Parlamento e confirmou a veracidade da informação que circulava, ou seja, que houve efetivamente pagamento aos empresários.
Suleimane Seide acrescentou ainda que tal prática não é nova no Ministério das Finanças; um pagamento da mesma natureza tinha sido efetuado meses antes da a coligação PAI Terra Ranka ter assumido o governo. Após a declaração no Parlamento, o Ministério Público convocou o ministro para uma audiência, juntamente com o secretário de Estado do Tesouro, António Monteiro. Após a audiência, Suleimane Seide e António Monteiro foram levados pelas forças de segurança presidencial para as celas da Polícia Judiciária. Segundo o Ministério Público, esta decisão permitiria que as audiências continuassem no dia seguinte.
No entanto, o que se seguiu à noite foi posteriormente descrito pelo Presidente como uma alegada tentativa de golpe de Estado: Naquela noite, um grupo de agentes da guarda nacional invadiu e retirou Suleimane Seide e António Monteiro das celas da Polícia Judiciária e levando-os para as instalações da guarda nacional. Este incidente resultou em um tiroteio entre agentes da guarda nacional e soldados do Batalhão Presidencial. Por fim, Suleimane Seide e António Monteiro foram recapturados pelos militares da Presidência sob as ordens do Presidente Embaló. Na sequência deste incidente, o Presidente Embaló, através de um decreto presidencial, dissolveu o Parlamento, demitiu o Governo e autoproclamou-se Ministro do Interior e da Defesa Nacional, alegando uma tentativa de golpe de Estado.
Contra-narrativa
A interpretação do Presidente da República do incidente como tentativa de golpe de Estado não convenceu muitos cidadãos da Guiné-Bissau e deixou perguntas sem resposta: Se o Ministro das Finanças autorizou o pagamento aos empresários, o que levou à sua detenção, e, posteriormente, levou ao tiroteio nas instalações da guarda nacional, qual foi o papel do Parlamento nesse incidente? Por outro lado, é possível efetuar um golpe de Estado nas celas da polícia judiciária ou nas instalações da guarda nacional? Se o Ministério Público decidiu prosseguir a audição no dia seguinte, porque é que o Ministro das Finanças e o Secretário de Estado do Tesouro foram levados para as celas da polícia judiciária pelos militares da Presidência? Estas e outras perguntas continuam sem resposta porque não há correspondencia entre os fatos e as justificativas apresentadas para a dissolução do parlamento e do próprio governo.
Em vez disso, os acontecimentos de 30 de novembro são vistos como uma armadilha do Presidente Embaló e dos seus aliados para retomar o controlo do poder. O evento não apresenta características típicas de um golpe de Estado. De facto, como o PAI Terra Ranka era a principal figura do governo, é difícil entender por que a própria coligação encenaria um golpe de Estado. A interpretação do Presidente Embaló de que se tratava de uma tentativa de golpe de estado parece ter tido como único objetivo, retirar o PAI Terra Ranka do poder e formar o seu próprio governo. E foi exatamente isso que aconteceu. Após a dissolução da ANP e do governo, o Presidente Embaló formou o governo denominado de “governo de iniciativa presidencial”, uma forma de governo que não está prevista na Constituição da Guiné-Bissau.
E agora, Guiné-Bissau?
As instabilidades políticas da Guiné-Bissau são cíclicas, com duas tentativas de golpe de Estado nos últimos dois anos e pelo menos 10 desde a independência em 1974. Os diferentes regimes que passaram pelo país falharam em atender as expectativas do povo da Guiné-Bissau. A ambição pessoal e a violação das normas constitucionais parecem ser os principais fatores de instabilidade política no país. Assim, no período que antecede as eleições presidenciais agendadas para novembro de 2024, “a grande questão na Guiné-Bissau […] será sobre como construir e manter o ímpeto para um sistema de governo estável e estabelecer barreiras institucionais contra o abuso de poder.” (ACSS 17 de janeiro de 2024)
Este artigo mostrou como um olhar atento às notícias de uma alegada tentativa de golpe de Estado pode revelar uma luta pela autoridade interpretativa em contextos políticos voláteis e narrativas sociais bastante diferentes que se encontram lado a lado. A vitória da oposição nas eleições legislativas de 2023 foi um sinal claro para o Presidente Umaro Cissoco Embaló de que o seu apoio público estava diminuindo, e as narrativas e contra-narrativas do alegado golpe apontam para uma polarização social crescente. A pressão e a polarização crescentes da sociedade deparam-se com um Estado cada vez mais repressivo, com um presidente que busca fortalecer seu controlo do poder. Embora os protestos indiquem uma resistência emergente contra o Presidente Embaló, o aparelho de repressão continua a ser temido e as medidas estatais estão a tornar-se ainda mais restritivas.
A recente criação de uma coligação de organizações da sociedade civil denominada “Frente Popular”, que até à data organizou duas marchas com o objetivo de protestar contra a precariedade das condições de vida no país e exigir ao Presidente a manutenção do Estado de direito e da democracia consagrados na Constituição, não é a última expressão deste facto. Durante a primeira manifestação de escala nacional, em maio de 2024, foram detidos vários ativistas, incluindo o líder da coligação, Armando Lona. Na segunda marcha, os manifestantes foram dispersos pelas forças de segurança. Em reação à continuação dos protestos, o Governo criou um batalhao anti-golpe e intensificou a repressão contra os manifestantes. Ainda na semana que se seguiu as manifestações, foram detidos mais ativistas, mas os protestos continuam a ser organizados, inclusive na diáspora.
Logo adiante, dois potenciais momentos críticos estão se aproximando e serão decisivos para derminar como os direitos democrátivos e a estabilidade do regime serão equilibrados no futuro. Um deles é a comemoração do centenário do herói nacional e líder da independência de Bissau, Amílcar Cabral, em 12 de setembro de 2024, seguida pelas celebrações em torno do feriado nacional de 24 de setembro de 2024. Ainda é incerto se o Presidente permitirá ou não as celebrações em torno destas datas, mas sua decisão será crucial para evitar ou desencadear uma nova onda de protestos. O outro momento crítico são as eleições presidenciais agendadas para novembro de 2024. O mandato do Presidente Embaló termina em fevereiro de 2025 e ele é elegível para um segundo mandato. No entanto, em vez de eleições presidenciais, o Presidente Embaló anunciou uma nova data de eleições legislativas. Enquanto as principais forças políticas e sociais defendem a manutenção do calendário eleitoral e a realização de eleições presidenciais ainda este ano, conforme previsto na Constituição, outras temem que a atual situação política não seja propícia à realização de eleições. Em meio a tudo isso, tem-se registado um silêncio notável por parte da comunidade internacional, e os analistas da Guiné-Bissau criticam a falta de reação da ONU, da União Africana, e da CEDEAO diante da crise política emergente.